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Cidadania robótica

Artigo publicado no Correio Braziliense em 26/09/2009

Cristovam Buarque*
Um dos maiores exemplos de cidadania brasileira foi desenvolvido pelos habitantes/cidadãos de Brasília: a faixa de pedestre. Graças a ela, sem repressão nem multas, os que dirigem carros, com o poder que o veículo inspira, passaram a respeitar um braço levantado por qualquer pessoa, rica ou pobre, velho ou criança, que desejasse passar de uma calçada à outra, atravessando a rua. Esse é um ato de alta cidadania, visto apenas em populações com elevado grau de educação.
No começo, poucos acreditavam que as faixas seriam respeitadas. Muitos temiam o desrespeito, com riscos de acidentes e mortes. Aconteceu o contrário: todos os motoristas passaram a respeitar, todos os pedestres passaram a usar, toda a população passou a se orgulhar.
Passados mais de 10 anos, as faixas continuam como exemplo de cidadania, mas começam a ter uma nova característica: estão sendo robotizadas por sinais de trânsito, que substituem o poder do cidadão ao levantar o braço pelo poder da luz vermelha ou verde acesas em um ritmo cronometrado. É possível que as novas faixas robóticas sejam mais eficientes e seguras, mas serão menos cidadãs.
O que caracteriza a força do cidadão não é poder atravessar a rua quando o sinal de trânsito determina, é poder determinar o momento de atravessar a rua em combinação respeitosa com os motoristas. O determinante da cidadania é o empoderamento do cidadão/pedestre ao determinar a hora de atravessar e do cidadão/motorista ao respeitar por livre vontade. Dois gestos de cidadania pessoal que geram cidadania coletiva. O sinal controla motorista e pedestre, põe ordem, não cidadania.
Mesmo se o pedestre detiver o poder ao acender a luz vermelha para o motorista parar, ele não aumentará a cidadania coletiva. O pedestre passa a exercer um poder sobre o motorista, que passa a ser um submisso, não um participante do processo de cidadania.
A faixa de pedestre é a combinação respeitosa entre o pedestre e o motorista; o sinal de trânsito é a submissão controlada de ambos, uns submetidos ao risco do atropelamento, outros ao risco de multa, se não atenderem à cor da luz. O Estado põe ordem, imposta a todos.
Mesmo que traga mais segurança ao robotizar as faixas de pedestres, o Distrito Federal vai matar o espírito de cidadania, empobrecendo o sentimento de respeito mútuo entre os cidadãos, para enriquecer os fabricantes do equipamentos e outras pessoas envolvidas, mesmo que trazendo mais segurança.
As faixas são o produto da educação e instrumento educacional. Muito mais do que um assunto de trânsito, elas são implantadas por processo educacional da população. No Distrito Federal, houve mudança de mentalidade pela mobilização cultural, que conseguiu transformar uma ideia em um comportamento social. Durante meses, o Correio Braziliense e a Rede Globo dedicaram espaço a divulgar a ideia; o governo do DF colocou instrutores/animadores nos locais das faixas, divulgando e treinando pedestres e motoristas; nas escolas foram distribuídos panfletos por meio do interesse e da curiosidade das crianças que se transformaram em educadores dos pais.
Depois de implantadas, elas se transformaram na própria escola de cidadania. Ao caminhar nas ruas onde há faixas de pedestres e, ao dirigir por elas, o cidadão educa sua cidadania, como pedestre ou como motorista. A cada dia, o cidadão apura mais sua cidadania.
A substituição das faixas por semáforos será um gesto de prática de trânsito, não será educativo, nem cidadão. Substituirá o compromisso soberano, espontâneo entre pessoas, por um constrangimento mecanizado de algumas pessoas para beneficiar a outras. Nesse sentido, a cidadania precisa de mais faixas e não de mais semáforos.
*Senador (PDT-DF), professor da Universidade de Brasília

palavras-chave: Brasília, DF, pedestre, faixa, travessia, proteção, segurança