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Vias Seguras / Educação / Educação ao trânsito: orientações pedagógicas / Educação no trânsito: não tratar o jovem como débil mental





"A educação no trânsito não deve tratar o jovem como débil mental"

Eduardo Biavati ensina professores da rede pública a esclarecer os alunos sobre a fragilidade do corpo humano na violência do trânsito

Marina Lemle

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Depois de acompanhar por uma década o drama de inúmeros jovens que chegavam com os corpos e os sonhos rompidos às unidades da Rede Sarah de Reabilitação, o sociólogo Eduardo Biavati desenvolveu um discurso autêntico para convencer jovens a evitar comportamentos de risco. Biavati, que coordenou o Programa Nacional de Prevenção de Acidentes de Trânsito da Rede Sarah de 1993 a 2004, é consultor do Detran do Rio Grande do Sul, viaja pelo Brasil dando palestras a crianças, jovens e professores e escreve um blog.

Nesta entrevista a Por Vias Seguras, ele afirma que os professores tendem a infantilizar a questão e recomenda mais autenticidade. “Você só é autêntico quando é verdadeiro, e só é verdadeiro quando mostra a realidade. Se você esconde a violência da realidade, não está sendo verdadeiro”, resume.

Por que é importante falar com os professores sobre educação no trânsito?

Porque a educação de trânsito não tem mais como acontecer apenas pelo trabalho dos educadores de trânsito – pedagogos, psicólogos e profissionais da área de gestão de trânsito. Os órgãos municipais e os Detrans têm cada vez menos fôlego para executar a educação para o trânsito. Há tempos falo que não dá para ficar indo de escola em escola, fazendo blitz no trânsito, uma campanha aqui e outra acolá, porque, primeiro, nunca tem gente suficiente e segundo, nunca há recursos suficientes para isso. Fica um trabalho muito isolado, pontual, uma enxugação de gelo sem fim.

Qual seria a solução?

Os órgãos de trânsito e as áreas de educação para o trânsito devem subsidiar e promover que os docentes da escola regular dediquem-se à educação de trânsito. São eles que afinal cuidam das crianças e têm uma capacidade infinitamente maior do que a dos educadores de trânsito dos órgãos públicos. Encontrar com os professores para engajá-los nisso é altamente estratégico.

O que a educação para o trânsito deve ensinar?

Ela tem que capacitar a criança e depois o jovem a lidar com os riscos, mas também formar indivíduos autônomos, críticos, capazes de perceber que os veículos sempre têm prioridade, mas que não tem que ser exatamente assim. Podemos fazê-lo entender por que ele tem que se cuidar e ao mesmo tempo instigar nele a percepção de que o mundo, tal como se apresenta hoje, com o predomínio do carro e dos deslocamentos motorizados, não é imutável. As coisas evoluíram assim por questão de escolhas políticas. A construção de uma avenida ou de um viaduto são escolhas muitas vezes feitas em detrimento de outras possibilidades, como calçadas generosas ou ciclovias para bicicletas. Mas enquanto o mundo é assim, precisamos aprender como é que se faz para atravessar uma rua, para usar uma bicicleta, para se transportar num carro.

O que pode ser ensinado para cada faixa etária?

Há uma série de procedimentos que tem que ser compreendidos pela criança desde pequena, indo com monitores e professores na rua, onde tudo é falado e demonstrado na realidade, para que a criança desde cedo aprenda a olhar o ambiente. Mais tarde, podemos falar para esse jovem que esse cuidar de si é na verdade preservar essa integridade do corpo, coisa que talvez uma criança de 7, 8 anos não entenda muito bem, mas o adolescente de 12 ou 13 anos tem que entender. Usa-se o cinto para não ficar tetraplégico e não por causa de uma multa de cem reais. Não é porque existe a lei que ele deve cumprir os procedimentos. A educação para o trânsito só deveria falar de Código de Trânsito bem mais tarde.

Como ensinar sobre essa fragilidade do corpo no trânsito?

A gente, quando muito, fala da morte. O que tem que ser revelado – mas as pedagogas morrem de medo – são as rupturas do corpo que acontecem no trânsito: o que é uma amputação, uma lesão medular, uma lesão cerebral. É um mundo oculto. Raramente uma criança ou adolescente tem contato com alguém que tenha tido o corpo rompido num acidente, um paraplégico, um tetraplégico, um motociclista que teve lesão cerebral. Falo para os jovens que somos livres e temos autonomia para escolher nossas condutas, mas faz parte dessa liberdade arcar com as consequências das suas atitudes. Pergunto: você sabe mesmo o que é ficar tetraplégico e não conseguir fazer xixi ou cocô? É o que vemos acontecer com jovens vítimas de acidentes de trânsito que chegam nas unidades da Rede Sarah. Ouvimos mil vezes de marmanjos de 17 anos “Eu não tinha ideia que podia ficar assim”. Um adolescente do oitavo ou nono ano estuda o funcionamento do sistema nervoso central, mas não aprende o que acontece quando não ele funciona mais!

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Você fala da parte sexual também?

Tem que falar! É nessa hora nas minhas palestras que um ou dois marmanjos desmaiam. O cara fica branco, escorrega da cadeira. Porque essas consequências nunca haviam sido reveladas para essa criança, para esse jovem. Eles não sabiam que pode acontecer uma perda total da ereção e que nem sempre se faz cocô como antes, tornando-se necessário, talvez, a ajuda de outra pessoa para retirar as fezes. Aliás, nem as professoras sabem. Os livros explicam sobre neurônios e como funcionam os neurotrasmissores. Mas como é quando nada funciona ninguém fala.

Por quê?

Os docentes em geral acham que é um conteúdo muito violento, triste, feio e que dá medo; então, para que mostrar? Mas a verdade é esta. Se você não dá referência da violência, ninguém compreende por que mudar de atitude, e continuam achando que não se pode correr porque está na placa ou na lei. Se ainda isso funcionasse, o mundo seria outro. A educação no trânsito deve parar de tratar os jovens como débeis mentais. Ela infantiliza, e não é para infantilizar. E aí as crianças continuam morrendo atropeladas.

Como os professores deveriam fazer?

Os jovens de hoje são tão ligados e fascinados por ciência... temos que revelar para eles qual é a da violência no trânsito. Isso implica em falar as coisas, como os ingleses e australianos fazem: conte a verdade, mostre a realidade. A física é assim: velocidade tal, frenagem, impacto, o corpo vai a tantos metros com tantas toneladas, a estrutura óssea suporta uma pressão de tanto antes de romper. A questão do trânsito poderia conectar uma série de assuntos da escola, como História, Geografia, Biologia, Ciências, Física, dos quais os professores já falam, só não conectam. Depois é preciso falar das atitudes e suas consequências, numa abordagem muito dramática e verdadeira, sem espaço para moralismo. Por incrível que pareça, todos sabem que é importante, mas não têm noção de o quanto realmente é. É raríssimo encontrar uma escola com um projeto pedagógico para a questão.

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Por que a educação para o trânsito é tão rara nas escolas?

Porque não entenderam que se um aluno até os dezoito anos vier a morrer, a causa terá sido tiro ou trânsito, como mostram as estatísticas nacionais. É claro que temos exceções, mas a questão da segurança do trânsito deveria ser central, rigorosamente central. Precisamos fazer uma aliança com os professores para falarem de trânsito. Do que adianta saber muito bem português ou matemática e morrer no trânsito? Nesse longo período escolar, nada ameaçará mais este aprendizado do que o acidente de trânsito, que no Brasil é uma coisa frequente. É inadmissível que seja um assunto ignorado. E é.

E como os professores reagem nas suas palestras?

Vejo pelas expressões na platéia que eles ficam perplexos, como se eu estivesse falando algo impressionante. Eles deveriam ter pensado nisso já. Mas tudo bem, o primeiro passo é conquistá-los e o segundo é envolvê-los para uma nova maneira de falar desse assunto.

Tem algum segredo para se falar com o jovem?

Tem um segredo sim. Esse discurso da segurança eu aprendi a fazer de dentro de um hospital. Conheci, ao longo dos anos, centenas de jovens paraplégicos, tetraplégicos, amputados, com lesões cerebrais, por causa de trânsito. Tenho um desejo sincero de convencimento. Toda vez que estou em contato com jovens, torço que nunca dêem entrada num hospital de Rede Sarah, porque é muito triste. Eles são livres e quanto maiores, mais livres, e eu quero que eles entendam que devem usar o cinto! Podem não usar, mas depois não quero que cheguem ao Sarah com esse papo: "Pô... eu não sabia que era pra usar o cinto...” Como assim não sabia? Tem cinco anos de idade? A pessoa pode até se lixar, mas tem que ser macho para assumir a escolha e depois a consequência, e ninguém é macho depois que se arrebenta. Todo mundo se desmancha, diz que aprendeu a lição. Não dá pra aprender um pouco antes? A palestras duram quase três horas e ninguém sai. Perguntam como consigo isso, e respondo que quero mesmo é articular um discurso que seja autêntico e que faça com que eles se protejam. Isso é o engajamento que se espera de todo educador. Você só é autêntico quando é verdadeiro, e só é verdadeiro quando mostra a realidade. Se esconde a violência da realidade, não está sendo verdadeiro.

Você leva fotos e vídeos?

Ao longo da palestra vou intercalando fotos, diagramas, vários pequenos vídeos com depoimentos de meninos e meninas que chegam ao Sarah. O roteiro funciona muito bem. Tem momentos divertidos, mas eu explico de cara que vamos tratar de um assunto super grave. Sinto que o que mais pressiona o jovem é demonstrar a fragilidade do nosso corpo. O que é mais importante para ele que o corpo? Aliás, mais importante ainda é o sexo! Digo : “Que ótimo, que bom... pois saiba que este corpão todo que você fica aí olhando no espelho se desfaz em menos de segundos!” Eles ficam perplexos e comentam: "Cara, eu nunca mais entro num carro sem cinto no banco de trás". Já ouvi muito isso.

Você acha que já interferiu ao ponto de fazer um jovem desistir de comprar uma moto ou mudar comportamentos de fato?

Varias vezes jovens e adultos me dizem isso. Respondo que não é para não ter a moto, mas para ter consciência da fragilidade da posição dela. A moto em si tem riscos, mas a maneira da condução pode elevar esse risco à milésima potência. Nas palestras sobre álcool e direção, direciono o discurso às meninas, que andam muito de carona no banco de trás dos carros, com um garotão de 16,17 anos dirigindo. Acidente com jovem é sempre grave porque andam em bando e se ferram em grupo!

E os de trás se ferem tanto quanto os da frente?

Acho até mais grave, porque um passageiro solto no banco traseiro, ao contrário do que as pessoas pensam, não está mais protegido e, além disso, ele queima a segurança de quem está na frente, de cinto. Há dezenas de casos de meninas e meninos que estavam no banco de trás, soltos, e que chegaram ao Sarah tetraplégicos ou paraplégicos e quando você pergunta do colega da frente, do namorado, do amigo, da amiga, dizem: ‘’ah, infelizmente morreu no acidente’’ e fazem aquela cara de santo. Eles caíram por cima! Não vou dizer isso nunca, mas muitas vezes dá vontade, quando você sabe um pouco mais da história. A pessoa acha que o banco é fofinho e vai amortecer, mas não, o banco quebra, a pessoa primeiro bate no teto, dobra o pescoço para trás - e aí já tem uma lesão medular - e ainda fere ou mata quem está na frente. Às vezes quem está no banco de trás sem cinto vai parar nos pedais do motorista, ali embaixo, todo embrulhadinho. Aqui no Brasil, de cada dez passageiros de trás, só um usa o cinto. Esse comportamento é generalizado entre os adolescentes. E como eles andam em grupos de quatro, cinco ou seis dentro do carro, é muitas vezes mais grave. Falo sempre nas palestras como é fácil nos protegermos. Mostro que toda viagem é uma viagem coletiva e que dependemos uns dos outros no trânsito. Não existe segurança de um só. Essa é a mensagem final da palestra: ou todos aprendemos a nos proteger ou ninguém está protegido.

E você sente que os jovens absorvem a mensagem?

Eu confronto o jovem com o que acho mais importante: não a morte, mas as conseqüências irreversíveis. Eles falam: “Se morrer, morri”, mas mostro que a morte é só uma possibilidade, existem outras. Se o adolescente diz que não usou o cinto porque, “tipo assim”, estava indo para a festa e não queria sujar a roupa, eu digo que na hora que se fica tetraplégico não tem “tipo assim”. Nesse momento sinto que eles ficam muito angustiados, afundados na cadeira, e pensam: ‘’Cara, tô ferrado, não vou escapar dessa...’’ E aí, pronto, querendo ou não querendo, mudou a vida dele, na marra. Não precisa nem tirar nem por a verdade, porque ela é dramática, violenta, dura mesmo. Acho que cada um tem condição de compreender e de chegar a uma conclusão, já que são bem inteligentes. Muitos professores acham que adolescente é débil mental, eu não, acho que o que falta é alguém diante deles que realmente goste deles. Falo aos professores que, se querem realmente convencê-los, têm que demonstrar que gostam deles. O objetivo dos encontros com professores é mostrar o poder de convencimento e de presença que eles têm e que ninguém tem.

Como você avalia as iniciativas de educação para o trânsito conduzidas por órgãos de trânsito e secretarias de segurança?

Na sua origem no Brasil, a educação para o trânsito era coisa de “milico”, como aliás toda a gestão para o trânsito. Era um departamento das secretarias de segurança pública. E ainda não se completou esse descolamento da educação das mãos de policiais. Até hoje vemos policiais militares e agentes de trânsito fardados indo na escola. Por mais bacana que seja a pessoa, é indissociável que a criança vá aprendendo que deve respeitar procedimentos porque um agente do estado mandou. E não é por isso. Não é por isso que a gente usa a faixa de pedestre ou o cinto. Não tem a ver com a lei, com punição ou fiscalização. Tem a ver, primeiro, com uma compreensão da fragilidade extrema do corpo no trânsito.

Então é uma questão de saúde?

De educação para a saúde. As condutas de segurança no trânsito fazem parte de um conjunto maior de formação de hábitos de saúde. Na Inglaterra não existe educação para o trânsito, pelo contrário, existe uma disciplina de formação do cidadão. Os americanos também já notaram a importância do caminhar na cidade, da recuperação do espaço urbano para meios de locomoção não motorizados. Ao treinar as crianças sobre o uso da calçada e da ciclovia, está tornado-as mais ativas e menos obesas. No Brasil, sempre houve a preocupação de treinar o cidadão a conviver com o carro, e não de treinar condutores a conviver com os habitantes. É uma educação de conformismo: a rua é do carro e os pedestres devem ser treinados. Os ingleses estão muito além nisso, promovendo a consciência de que o espaço é público. Essas coisas vão exigir que a educação para o trânsito no Brasil saia dos órgãos de trânsito, porque a questão tem que ser compreendida como parte de uma educação mais ampla, de formação de hábitos de saúde.

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