Especialistas alertam para o perigo de dirigir após ingerir bebidas alcoólicas, mesmo em pequenas quantidades
Marina Lemle
A Lei Seca implantada em 2008 estabelece alcoolemia zero, mas como os bafômetros nas blitzes permitem uma margem de 0,2 gramas de álcool por litro de sangue - o equivalente a uma dose de qualquer bebida -, muita gente acha que se beber só um pouquinho estará livre dos riscos. Não é bem assim. A pessoa pode até se livrar de penalidades, mas não do perigo de se envolver em acidentes. É o que afirmam especialistas como o neurologista e professor José Mauro Braz de Lima, diretor do Hospital São Francisco de Assis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
“Uma questão importante pós-Lei Seca é o álcool como fator de risco subestimado”, diz o médico. Segundo ele, o álcool atua na região frontal do cérebro e, mesmo em pequenas quantidades, deixa a pessoa desinibida e com menos noção de perigo.
“Para afetar os reflexos, realmente a dose tem que ser mais alta, mas pouco álcool já altera as condições cerebrais, causando euforia. Os jovens ficam irresponsáveis”, afirma. Ele explica que um copo de cerveja, uma taça de vinho ou uma dose de whisky têm a mesma quantidade de álcool puro e resume: “Não existe bebida leve”.
Para verificar o padrão de comportamento de motoristas do Rio de Janeiro após a implantação da Lei Seca, a mestranda Louise Anne Reis da Paixão, da Escola de Enfermagem Anna Nery do Hospital São Francisco de Assis/UFRJ, vai entrevistar jovens e adultos jovens que estão renovando suas carteiras numa unidade do Detran. Cada entrevistado responderá a dez perguntas sobre consumo de bebida alcoólica, perfil sóciodemográfico e fatores de risco associados.
Em sua defesa de projeto, realizada em 9 de junho 2011, Louise apresentou dados que mostram a pertinência da questão: jovens de 19 a 24 anos e adultos jovens de 25 a 39 anos são os que mais morrem e se ferem em acidentes de trânsito.
O assunto não é novo para ela. No seu trabalho de conclusão do curso de Enfermagem na UFRJ, Louise estudou o comportamento de jovens universitários em relação a álcool e direção. Ela entrevistou 336 alunos de diferentes cursos e descobriu que após a Lei Seca eles continuaram a beber e digirir, mas menos.
“Houve uma mudança de comportamento para mais saudável. Mas as pessoas acham que podem beber pouco”, afirma. Segundo ela, pesquisas indicam que mesmo concentrações menores de álcool, como 0,1g, já aumentam o risco de colisão.
Louise foi bolsista do Núcleo de Atenção ao Acidentado de Trânsito (Naiat) da Escola Anna Nery, que presta atendimento de reabilitação a indivíduos com lesão medular e desenvolve atividades de prevenção em empresas, escolas, bares e eventos como festas juninas. Ela continua ligada ao grupo, porém, não mais como bolsista.
O Naiat é parceiro da Operação Lei Seca e produziu a cartilha “Amigo do trânsito, seja você também”, que explica por que álcool e direção não combinam. O Núcleo também trabalha em escolas atendidas pelo programa Saúde da Família e recentemente passou a atuar no Complexo do Alemão, onde apresenta a peça de teatro “Álcool e drogas no trânsito: essa mistura não rola”.
A orientadora do projeto, a professora doutora Ângela Abreu, que comanda o Naiat, lembra que há uma média de três mortes por dia na cidade do Rio de Janeiro por acidentes de trânsito e que cerca de metade dos acidentes fatais estão relacionados ao uso e ao abuso do álcool. Ela é autora da tese de doutorado Mortalidade nos acidentes de trânsito na cidade do Rio de Janeiro relacionada ao uso e abuso de bebidas alcoólicas (Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ/2006).
Para o professor José Mauro Braz de Lima, as mortes por acidente de trânsito no Brasil são uma epidemia: cerca de 40 mil mortes por ano para 200 milhões de habitantes, o que equivale a 20 mortes para cada 100 mil habitantes, ou uma morte a cada 15 minutos. Ele lembrou que nos EUA, são 42 mil mortes ao ano, mas para 300 milhões de habitantes. “O álcool no trânsito é a primeira causa de morte entre jovens e entre as pessoas que dirigem”, destaca.
Segundo o neurologista, pesquisas estimam que os custos dos acidentes de trânsito ultrapassam R$ 30 milhões por ano, o que representa mais de a metade do orçamento total do Ministério da Saúde, de cerca de 50 milhões.
“Clientes acidentados são especiais. Além da atenção básica e da fisioterapia, precisam de atendimento psicológico, eles e as famílias, por causa do trauma que sofrem. Necessitam de assistência tematizada, individualizada, para recompor suas vidas”, diz. Segundo ele, faltam no Brasil mais locais de atendimento e serviços de referência.
Para Braz de Lima, a propaganda de cerveja, voltada para o público jovem, tem sido altamente eficaz no seu intuito de aumentar o consumo da bebida. Já as campanhas do governo e da sociedade civil sobre segurança no uso e abuso do álcool não têm o mesmo alcance e impacto.
O médico frisa a diferença entre uso, abuso e dependência: “O dependente tem uma doença grave. O abuso é ocasional, em festas, por exemplo. E o uso, em si, não é um problema, mas sim em situações específicas, como beber e dirigir, que é um fator de risco”.
Ele acha possível minimizar o problema com políticas públicas complementares. “A França tinha números escandalosos de mortes no trânsito e reduziu em 50% com estratégias que incluem informação, regulação e fiscalização, além de melhoras no atendimento e no tratamento”, exemplifica. Ele conta que as blitzes na França passaram a ter carros da Polícia com bafômetro, carros da Saúde para atendimentos e carros da Justiça. “A pessoa alcoolizada já saía de lá com uma multa altíssima ou presa”, relata.
Para Braz de Lima, são necessárias políticas públicas mais sérias e que contem com o apoio da sociedade. Na sua opinião, o “dolo eventual” tem que ter uma punição real, já que quem bebe e dirige sabe do risco de acidentes que provoca.