Cinto em ônibus poupa vidas, mas não é usado
Falta de conscientização e de fiscalização são os principais motivos de a lei não ser cumprida
Marina Lemle
Quanta dor é necessária para se aprender uma lição? Menos de um mês após o acidente com um ônibus que resultou em 15 pessoas mortas e 12 feridas na estrada Rio-Teresópolis (BR 116) – tragédia noticiada no país inteiro – já quase não se fala sobre a importância do uso de cinto de segurança em ônibus, mesmo diante da evidência de que, dos 29 passageiros a bordo, os dois que usavam cinto tiveram apenas ferimentos leves.
O Código de Trânsito Brasileiro obriga o uso do cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional, salvo em situações regulamentadas pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran). A lei prevê que motoristas que permitam que passageiros andem sem cinto sejam multados em R$ 127,69 e percam cinco pontos na carteira de habilitação. O artigo 2o da Resolução nº 14/98 do Contran exime da punição veículos que fazem percursos nos quais é permitido viajar em pé e aqueles produzidos até 1º de janeiro de 1999, quando o dispositivo não era obrigatório. Não foi determinada a adaptação dos veículos de fabricação anterior a 1999. Essas duas exceções são criticadas por serem contraditórias com a própria finalidade da lei: proteger os ocupantes de um veículo em caso de acidente.
Apesar da existência da Lei e das tristes evidências que os acidentes levantam, a imensa maioria dos passageiros de ônibus que circulam nas estradas não usa o cinto. Um levantamento feito pelo programa SOS Estradas com 1.050 passageiros em 35 viagens de ônibus, a maioria entre Rio e São Paulo, concluiu que apenas 2% dos passageiros utilizam o acessório de segurança. O estudo foi feito após a entrada em vigor, em 2005, da Resolução 643 da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que obriga as empresas de ônibus a informar os passageiros sobre a necessidade do uso do cinto.
Com base nos resultados, o SOS Estradas enviou propostas ao Contran e à ANTT, entre outros órgãos, sugerindo a aplicação de multa ao passageiro, a sua retirada do veículo caso se recuse a colocar o cinto, a ampla divulgação da lei e a realização de campanhas de conscientização nos terminais rodoviários.
Para Rodolfo Rizzotto, coordenador do programa, a multa e a retirada do passageiro se justificam porque ao não usar o cinto ele coloca em risco a vida de terceiros, além da própria. “Num acidente ou numa freada violenta, os corpos soltos no veículo podem causar ferimentos graves e até matar outros passageiros”, explica. Rizzotto acrescenta que a movimentação de pessoas dentro do veículo distrai o motorista e pode causar um acidente.
Ele considera uma injustiça multar o motorista. “Há passageiros que fazem gozações quando ele pede que coloquem os cintos. Aí já começa a dirigir contrariado. O certo seria que nesse momento estivesse acompanhado por um agente público do órgão responsável por aquela linha”, argumenta.
O SOS Estradas propôs ainda a instalação obrigatória de informações sobre a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança como dever do passageiro na área de embarque dos terminais rodoviários, dentro dos veículos, nos guichês de venda de passagem e nos bilhetes. As ações punitivas seriam precedidas por campanhas de esclarecimento sobre as razões que justificam as medidas. Segundo Rizzotto, as empresas têm culturas diferentes umas das outras, mas o setor ainda não entendeu a importância de se informar os passageiros sobre o Código de Trânsito e de se chamar o fiscal da ANTT quando um passageiro se recusa a afivelar o cinto.
“Há pessoas difíceis de lidar, que não pensam no coletivo e que mesmo pensando em só si, não raciocinam com inteligência”, opina. Ele conta que passageiros que reclamam que outros não botam cinto acabam sendo ridicularizados. Para Rizzotto, com a fiscalização e a retirada do infrator do veículo, o passageiro consciente se sentiria valorizado.
Mas ele não guarda mais expectativas sobre a instituição de punições a passageiros, porque considera a ANTT e outros órgãos omissos. “O que estamos tentando agora é que os órgãos responsáveis pela fiscalização das linhas, incluindo a ANTT façam ações nos terminais rodoviários. Deveria haver anúncios nos terminais de que é obrigatório usar o cinto, mas não há compromisso com a redução de acidentes. Prova disso é que a ANTT não estabelece metas”, denuncia.
De acordo com Rizzotto, nos estados do Paraná, Minas Gerais e Rio Grande do Sul têm sido realizadas intervenções, como ações de fiscalização e informação, que a imprensa divulga, e então nota-se uma melhora. “Mas se não houver um trabalho contínuo, o problema volta”, alerta.
Informação e punição
Diante da notícia do acidente na Rio-Teresópolis, o presidente da Confederação Nacional dos Usuários de Transportes Coletivos de Passageiros Rodoviários, Ferroviários, Hidroviários, Metroviários e Aéreos do Brasil (CNU), Elton dos Anjos, informou ao site Portogente que a CNU está desenvolvendo uma campanha nacional pelo uso do cinto que oferecerá às empresas vídeos institucionais mostrando os riscos da falta do uso, que poderão ser exibidos tanto dentro dos ônibus como em terminais rodoviários de todo o país. “Precisamos conscientizar todos os passageiros que isso pode salvar a sua vida. Somente desta maneira é que conseguiremos diminuir drasticamente mortes e ferimentos graves dos passageiros deste país”, escreveu Elton dos Anjos, que não foi localizado pela Associação Por Vias Seguras.
Rodolfo Rizzotto concorda que a projeção de imagens nos terminais rodoviários poderia ajudar a conscientizar os passageiros e seus familiares, que pediriam que colocassem o cinto. Ele é cético, porém, sobre a exibição de vídeos dentro dos ônibus. “As empresas de transportes rodoviários teriam constrangimento de assumir que existe risco de acidentes no serviço que estão prestando”, afirma.
Para ele, as campanhas educativas são importantes, mas o que funciona é punição. “As pessoas estão morrendo hoje, não se pode só esperar os resultados da educação”, diz.
De acordo com o pesquisador em Transportes da Universidade de Brasília Artur Morais, todo cidadão com mais de 40 anos foi mal formado no trânsito e precisa ser fiscalizado. “Hoje usamos cinto de segurança nos carros, mas quando a obrigatoriedade começou, teve que haver muita multa. Hoje as crianças botam o cinto naturalmente nos carros. Mas ainda não temos a cultura de ensinar as crianças a se comportar no trânsito”, ressalta.
Para Morais, deveria haver campanhas nas rodoviárias, filmes educativos dentro dos ônibus sobre os perigos de andar sem cinto e campanhas na TV. “Há um monte de coisas para se fazer, não se pode é ficar de braços cruzados chorando 40 mil pessoas mortas por ano e outras tantas inválidas, dependendo do SUS”, enfatiza.
Morais defende que no transporte terrestre deveria ocorrer o mesmo que na aviação: se o passageiro do avião não quer botar o cinto, chama-se a polícia e ele é retirado. “O despachante do ônibus teria que olhar um por um e obrigar a afivelar o cinto. O que falta é vontade para se fazer. A pessoa tem que ser responsável e tem que ser punida por não aceitar a regra”, defende.
Em Minas, passageiros alegam “falta de hábito”
Em Minas Gerais, estudos da Gerência de Educação para o Trânsito do Departamento de Estradas de Rodagem do Estado (DER/MG) mostram que o uso do cinto de segurança em ônibus ainda é raro. A principal justificativa dos entrevistados é a falta de hábito. As pesquisas foram realizadas em 2007 e 2010 nas regiões de Belo Horizonte, Juiz de Fora, Uberlândia, Montes Claros e Governador Valadares. Em 2007, 35% das pessoas assumiram não ter o hábito, e em 2010, esse percentual cresceu para 40%.
De acordo com Rosely Fantoni, coordenadora dos programas de Educação para o Trânsito do DER/MG, os usuários sentem-se seguros pelo fato de o ônibus ser grande e alto. “Mas essa sensação de proteção é falsa”, diz. Ela explica que, em uma colisão, três choques acontecem: o choque do veículo com o obstáculo; o choque da pessoa com os componentes do veículo; e a colisão dos órgãos internos da pessoa. “Se o ônibus estiver a 80 km/h, a pessoa será projetada com essa velocidade. Com o uso do cinto, seriam evitados dois choques”, ressalta.
Segundo o DER/MG, hoje 80% dos ônibus intermunicipais têm cinto, e, até 2014, 100% da frota estará regularizada. O órgão promove ações de fiscalização e educação em estradas, principalmente em feriados, quando é maior o fluxo de pessoas.
RS: poucos acidentes, mas grande frota sem cinto
Mesmo com baixa taxa de acidentalidade dos ônibus, no Rio Grande do Sul, a Secretaria de Infraestrutura e Logística do estado, a Superintendência Regional da Polícia Rodoviária Federal, o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) e a Associação Rio-Grandense de Transporte Intermunicipal (RTI) realizam campanhas para passageiros e junto às empresas de transportes rodoviários sobre a necessidade do cinto - 40% da frota ainda não têm o equipamento por ser anterior a 1999 - e sobre a importância de se convencer os passageiros a usá-los..
De acordo com Saul Sastre, diretor de Transportes Rodoviários do Daer, são realizadas blitzes nas quais os agentes perguntam aos passageiros se o motorista cumpriu o dever de informar sobre a obrigatoriedade do uso do cinto na saída. “Se ele não tiver cumprido o ritual, será multado”, conta. Já os passageiros sem cinto são alertados sobre a importância do uso do equipamento de segurança. Em 15 de dezembro será iniciada a Campanha de Verão, com ações de fiscalização e de conscientização.
Cinto de três pontos poderá virar lei
Tramita no Senado Federal o projeto de lei PL-4254/2012, do senador Geraldo Resende (PMDB/MS), que torna obrigatório o cinto de três pontos nos veículos rodoviários, em vez do cinto subabdominal, que não deixa que as pessoas sejam arremessadas, mas não segura a coluna vertebral no encosto da poltrona. O projeto deverá ser analisado pela Comissão de Viação e Transportes e pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. O cinto de três pontos já é obrigatório para todos os assentos dos automóveis, com exceção dos assentos centrais, que podem utilizar o cinto subabdominal.
Criado em 1959 pelo sueco Nils Bohlin, o cinto de segurança de três pontos reduz em pelo menos 45% o risco de morte em acidentes, segundo estimativas da Volvo, que disponibiliza no site do seu Programa de Segurança no Trânsito a seguinte tabela com dicas de atitudes seguras para viagens de ônibus:
Mais informações:
A importância do uso do cinto de segurança nos ônibus
Artigo dos médicos Luís Fernando Manzano e Eduardo Fernando de Souza
Filme da Volvo sobre acidentes com ônibus e a importância do uso de cinto de segurança
Vítimas de acidentes de transportes coletivos de passageiros – artigo publicado em 2012 pela Seguradora Líder dos Consórcios do Seguro DPVAT.
Evaluation of occupant protection in buses - Relatório canadense sobre a segurança dos passageiros de ônibus com dados do Canadá, Estados Unidos, Austrália e Europa. Arquivo PDF.
Índice de Desempenho do Setor de Transportes – Dados mostram que 1.006 empresas de ônibus atuam no transporte intermunicipal de passageiros e 205 no interestadual.
Boletim Estatístico Rodoviário da Confederação Nacional dos Transportes – Números de maio de 2012 sobre a frota de veículos no país, incluindo de transporte de passageiros.