Após o impacto, a estrada que segue
O livro “Seguindo a estrada” reúne relatos de vítimas diretas e indiretas do trânsito, que encontram na solidariedade a luz de que precisam para construir novos caminhos
Marina Lemle
Calha a tragédia de acontecer com alguém, e ninguém nunca está preparado. A dor da perda repentina é impensável para quem não a conhece. E se a dor alheia comove, também apavora, porque remete à fragilidade de cada um num mundo de perigos aleatórios e condutas inconsequentes. Por isso, sentimentos estranhos acompanham o escorrer das lágrimas durante a leitura do livro Seguindo a estrada – Trajetória de perdas repentinas/precoces no trânsito, organizado pela psicóloga Maria José da Silva Amaral, editado pela Seguradora Líder e a Fundação Escola Nacional de Seguros – Funenseg e distribuído gratuitamente.
O livro é uma coletânea de relatos de sobreviventes: vítimas diretas, desmembradas fisicamente, buscando se reconhecer em suas novas condições, e vítimas indiretas – parentes e amigos -, desmembradas na alma pelas perdas insuperáveis.
São 33 histórias contadas de maneira tão visceral que é possível “ouvir” nas entrelinhas suspiros e pausas dolorosas. Na tentativa de dissuadir o sofrimento, alguns acionam artifícios estilísticos, como os pais de Fabiana, que partiram das peraltices da cachorrinha Pituca para falar da falta que “ela” – a cachorrinha - sente da moça bonita que a trouxe ao lar num domingo e sumiu no domingo seguinte. Outros discorrem detalhadamente sobre a passagem iluminada da pessoa querida desde o nascimento, mencionando a tragédia apenas en passant, num nítido esforço de colocar a ênfase no lugar certo: a vida.
Com vozes e tons diferentes, as narrativas trazem em comum a infinitude da dor e, de alguma forma, a tentativa de se reerguer. Trazem, também, a gratidão pela solidariedade que receberam de pessoas até então desconhecidas e que viveram dramas semelhantes. Melhor do que os outros, estas são capazes de ouvir e compreender a dor em todas as suas nuances - revolta, raiva, negação, vazio, tristeza profunda, saudade e outros sentimentos indescritíveis – e lhes dão apoio e orientação no processo de retomada das rédeas de suas vidas.
Os pais de Saulo perceberam que só conseguiriam continuar a viver “saindo do leito em direção ao recomeço.” A mãe, Elizabete, participa de um grupo de mães e integra a Rede de Solidariedade Telefônica, um dos projetos do Núcleo de Apoio à Vítima (Navi) do Detran-RJ. Ela conta que com isso procura diminuir a dor e o desespero de outras famílias. Paralelamente, colabora em atividades voltadas para a prevenção de acidentes de trânsito.
“Jamais comparei a dor de um ser humano com a de outros, pois cada um reage à sua maneira. Voltei a viver, mantendo sempre o sentimento de fraternidade, ajudando para que outras pessoas não caiam na passividade, observando o tempo passar sem desenvolver o espírito de solidariedade e amor para com o próximo”, diz.
O Navi foi criado por Maria José da Silva Amaral (foto) após a perda, por atropelamento, da sua mãe e da sua filha, no ano 2000. O trabalho ajudou a suavizar sua dor e angústia. “Tive um choque muito grande, não sabia o que fazer. Então criei o Navi, o que foi muito gratificante. Atendi cerca de oito mil pessoas de 2003 a 2009. Dava orientação jurídica, encaminhamento social, psicoterapia e apoio emocional num momento crítico da dor. Fizemos uma grande rede. Ninguém melhor do que quem já passou por situação similar para ajudar”, explica.
Hoje Maria José voltou a trabalhar como psicóloga em sua clínica, mas continua atendendo vítimas de trânsito gratuitamente. Ela diz que, como vítima, pode dizer coisas que pela técnica de psicologia não deveria.
“Por exemplo, se a pessoa fica se perguntando ‘Por que eu?’, respondo ‘Por que não você? Você não é diferente das outras pessoas, e isso acontece com centenas de pessoas no país diariamente’. Posso dar um sacode em quem quer adormecer na dor. Ser um deprimido é como ser um morto-vivo. É preciso dar um encaminhamento diferente para a dor, que é algo muito subjetivo, para fazer o processo ser mais rápido. Tenho conseguido conviver com a perda e a saudade. Agora tenho que plantar a solidariedade”, afirma. Ela acredita que depois de ler o livro as pessoas terão outra visão sobre a continuidade após a tragédia e a dor.
De acordo com Maria José, as vítimas têm uma grande necessidade de escuta, porque para a superação, precisam repetir seus sentimentos. Por saber disso, vítimas estão mais propícias a serem multiplicadoras. “É um trabalho grandioso de palestras e atendimentos”, diz. Ela conta que pessoas com punições administrativas no Detran também passavam pelo Navi, onde tinham contato com vítimas e mudavam de postura no trânsito.
“A vítima quer lutar por Justiça, por leis mais firmes, e o movimento tem ajudado bastante, inclusive no endurecimento das penas dos infratores. É preciso pensar o acidente não como um acidente, mas como algo que poderia ser evitado. Nossa sociedade ainda é muito atrasada em relação às leis. A lei seca teria evitado muitas tragédias”, afirma.
Ligado à Comissão Cidadã do Detran-RJ, o Navi conta com uma equipe multidisciplinar, formada por psicólogos, assistente social, enfermeiro e fisioterapeuta, e oferece apoio administrativo. Um grupo de ajuda mútua se reúne mensalmente e são realizadas atividades culturais, passeios, palestras educativas e motivacionais e outros eventos que proporcionem convívio social e diversão, para estimular o equilíbrio emocional de todos.
O Navi atende pelo telefone 2332-0471.
Para baixar o livro “Seguindo a estrada”, clique aqui
Agradecemos à Maria José da Silva Amaral e demais autores, à Seguradora Líder e à Funenseg pela disponibilização do arquivo para download gratuito em nosso site.