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Vias Seguras / Educação / Educação ao trânsito: orientações pedagógicas / Morbimortalidade no trânsito: processos educativos e promoção da saúde (1a parte)





Morbimortalidade no trânsito: limitações dos processos educativos e contribuições do paradigma da promoção da saúde (1a parte)

(Extrato de um artigo de Vitor Pavarino, CFTRU, Brasília, 2009)

Resumo

Introdução

Educação de trânsito: premissas e limitações

Contradições e impasses

Resumo

Frente ao grave problema de saúde pública representado pela morbimortalidade por acidentes de trânsito, o relatório que marcou o posicionamento da Organização Mundial de Saúde (OMS) a respeito do tema, em 2004, mostrou-se reticente em relação a ações educativas voltadas aos usuários das vias públicas. O presente artigo assume que os pressupostos teóricos que fundamentam estas ações em contextos como o brasileiro, somados às características do ambiente de circulação e às esferas técnicas e políticas dos países em desenvolvimento, justificam, em alguma medida, as reservas a estas intervenções. Advoga-se, nesse sentido, a pertinência de iniciativas identificadas com a mudança de paradigmas na segurança no trânsito, assinalada no próprio relatório da OMS, aliadas ao conceito de promoção da saúde e a recentes percepções das questões da mobilidade, sustentabilidade e equidade nos transportes.

 

Introdução

Enquanto em países como os Estados Unidos da América (EUA), Canadá e algumas nações européias a mortalidade no trânsito apresentava tendência crescente até o início dos anos 1960, passando então a cair progressivamente, no Brasil, inversamente, a curva de vítimas fatais no trânsito inicia uma ascensão na segunda metade do século XX. O número de mortos aumentou em seis vezes entre 1961 e 2000 e o de feridos foi multiplicado por 15.1

Após ligeira interrupção na curva ascendente de óbitos, no início e em fins da década de 1990, as taxas de mortalidade por habitantes no trânsito brasileiro voltaram a apresentar uma tendência geral de elevação, com o Ministério da Saúde (MS) tendo registrado, para o ano de 2004, 35.084 óbitos pelos chamados acidentes de transporte terrestre - ATT (códigos V01 a V89 na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - Décima Revisão (CID-10), a uma taxa de 19,5 mortos por 100 mil habitantes. Naquele ano, a maior parte dos óbitos registrados foi por atropelamentos de pedestres que, entre indivíduos de 0 e 14 anos e idosos acima de 60 anos, consistiram a primeira causa de mortes por ATT, respondendo por cerca de 50% dos casos.2

Afora a desestruturação de núcleos familiares, o sofrimento e outras consequências de difícil mensuração, a soma dos custos relacionados aos conflitos envolvendo eventos como colisões, capotamentos, quedas de veículos e atropelamentos nas vias urbanas e rodovias brasileiras beiravam, segundo estudos publicados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2003 e 2006,1,3 R$ 30 bilhões a cada ano. De acordo com o IPEA, a maior parte dos prejuízos referia-se à perda de produção, associada à morte das pessoas ou interrupção de suas atividades, seguido dos custos de cuidados em saúde e os associados aos veículos.

A gravidade da questão, notadamente em países em desenvolvimento, contribuiu para que a Organização Mundial de Saúde dedicasse o Dia Mundial da Saúde de 2004 à segurança no trânsito, levando a público o World report on road traffic injury prevention,4 desenvolvido junto a vários especialistas em segurança viária. O relatório, descrevendo a magnitude do problema, os fatores de riscos e as intervenções propostas, foi apresentado em uma inédita sessão plenária da Assembléia Geral das Nações Unidas voltada ao assunto, culminando com uma Resolução da ONU conclamando seus países-membros a ações mais enérgicas.5 Entretanto, não obstante a natureza previsível dos traumas no trânsito ter motivado tal empenho, vale notar, para os fins da discussão aqui proposta, que a "educação de trânsito" (ou "para o trânsito"), tradicionalmente entendida como pilar de um trinômio que inclui esforços na engenharia e na fiscalização, recebeu no relatório da OMS um espaço diminuto, e mesmo certo ceticismo.

De fato, em suas mais de 200 páginas, o relatório dedica ao tema não mais que dois parágrafos, dez referências bibliográficas e um box sobre a educação de pedestres, cuja essência é o registro da falta de evidências quanto a eficácia das estratégias educativas voltadas a usuários das vias, como resposta à redução da acidentalidade no trânsito. Tal posicionamento, com efeito, não deixaria de gerar desconforto entre os que atuam na área. A coordenação do Instituto de Seguridad e Educación Vial argentino, a este exemplo, assinala no manifesto La educación vial no sirve6 o quanto a educação de trânsito tem experimentado um franco processo de desvalorização. As reservas do relatório da OMS, contudo, apenas resumem um posicionamento que, em alguma medida, refletem também a forma com que a própria sociedade e o poder público avaliam, de maneira geral, a educação de trânsito - o que se verifica mais pelos investimentos concretos em recursos voltados a ações pedagógicas do que por discursos vagos, preconizando prioridade à educação.

Assume-se, neste texto, que as referidas ressalvas às ações educativas podem se dever a mais do que uma simples desvalorização geral destas práticas, mas, antes, à natureza de seu exercício na realidade vigente. Neste sentido, o presente artigo identifica problemas decorrentes das premissas que fundamentam as práticas educativas convencionais no contexto brasileiro e sinaliza alternativas centradas na visão da promoção da saúde e nas abordagens a ela sintonizadas.

A esta introdução segue-se uma caracterização sucinta da prática da educação de trânsito no Brasil, identificando as contradições inerentes a esta atividade, frente ao panorama constituído pelo ambiente de circulação, pelo ambiente político e pelo ambiente técnico, descritos por Vasconcellos.7 A seção seguinte identifica alternativas aos modelos educativos predominantes, inspiradas nos preceitos do paradigma da promoção da saúde, contrapondo, particularmente, visões voltadas à redução de acidentes e danos à da redução de riscos. As considerações finais ressaltam a importância do mais recente envolvimento do setor de saúde nas questões relacionadas aos transportes e a particular identidade do paradigma promocional com os modernos preceitos de mobilidade sustentável.

Educação de trânsito: premissas e limitações

No Brasil, em não havendo uma definição formal para a "educação de trânsito" - mesmo o Código de Trânsito Brasileiro,8 que prescreve sua obrigação, não define seu escopo e natureza - são as próprias práticas, realizadas principalmente por órgãos de transporte/trânsito, que dão seus contornos, por meio de ações regulares ou esporádicas, como campanhas, palestras e distribuição de cartilhas e manuais voltados aos usuários das vias públicas. Uma breve verificação das práticas e materiais educativos disponíveis permite neles identificar o intuito de se agir basicamente sobre a conduta destes usuários. Nesse sentido, a educação de trânsito suscita idéias que variam desde o aprendizado de normas e habilidades para conduzir veículos a advertências e preceitos de civilidade, próximos a uma etiqueta viária. Assim, ainda que isto limite as possibilidades de uma educação de trânsito (e da própria função de um educador), é fundamentalmente a prevenção de conflito no trânsito e a minimização de suas consequências o que caracteriza a educação de trânsito nas práticas mais correntes, justificadas por conhecidas e alarmantes estatísticas.

Para a promoção da educação de trânsito assim entendida, a essência dos métodos e conteúdos preventivos são basicamente definidos a partir dos entendimentos tradicionais da questão da segurança viária, particularmente no que concerne à identificação de causas ou de responsáveis imediatos pelas colisões, atropelamentos etc. Tal prática educativa, por decorrência, não poderia deixar de refletir as diagnoses convencionais acerca da problemática dos chamados acidentes e, particularmente, evitar a responsabilização monocórdia do fator dito "humano" - um expediente que costuma prestar-se mais a isentar o poder público de suas atribuições do que a prover avaliações precisas.9 Muitas proposições educativas, inspiradas nas teorias e técnicas de segurança desenvolvidas majoritariamente em países centrais, não poderiam tampouco resistir à importação (frequentemente sem maiores critérios) de métodos e parâmetros trazidos no bojo destas mesmas teorias.

Os elementos objetivos que disto se depreende para realidades como a brasileira - como também para países com características semelhantes10 - são situações em que, resguardadas as exceções, a educação de trânsito parte do princípio de que a imprudência dos indivíduos é a grande causa dos problemas nas vias e, a partir disto, resume a prática educativa a disseminação de regras, advertências e slogans, em abordagens que buscam, fundamentalmente, proteger as pessoas delas mesmas, adaptando suas condutas à infraestrutura existente para o tráfego motorizado.

Contradições e impasses

Abordagens como as acima descritas deparam-se com problemas estruturais básicos no trânsito existente nos países em desenvolvimento. As advertências objetivando a preservação da integridade dos ocupantes de veículos automotores (como as relativas ao uso do cinto de segurança, do capacete ou ao efeito de bebidas), por exemplo, são medidas cujos resultados tendem a estar condicionados ao rigor das fiscalizações11 que, por sua vez, costuma ser limitada por recursos escassos, além de serem politicamente impopulares. Ademais, para grupos como pedestres, muito representativos nas estatísticas de países em desenvolvimento, mecanismos de proteção como cintos e airbags não se aplicam. Com efeito, discussões relacionadas aos estudos da compensação de riscos12 identificam que veículos com os mecanismos ativos e passivos de segurança, cada vez mais eficientes, podem também levar motoristas a dirigir de maneira menos cautelosa, causando maiores riscos exatamente aos usuários da via, mais vulneráveis, que estão fora dos carros. E é em relação à vida destes, cujo problema é sabidamente crítico, que a educação de trânsito mais se depara com contradições.

O contexto de tais contradições é compreensível a partir do panorama assinalado por Vasconcellos,7 ao apontar três aspectos negligenciados nas avaliações das causas dos conflitos no trânsito, em países em desenvolvimento. O primeiro destes - entendido como o mais relevante - diz respeito ao ambiente de circulação, adaptado para o uso pelos automóveis e concebido com limitadas condições estruturais de manutenção e operação. O segundo aspecto é o do ambiente político, decorrente das limitações de democracias incipientes, implicando políticas públicas desfavoráveis à maior parte da população. Ainda neste campo, situações onde diferenças sociais são profundas favorecem a visão e mesmo um auto-conceito de pedestres e usuários de meios não-motorizados como "cidadãos de segunda-classe", fato que autoriza uma ocupação do espaço público de maneira violenta e inconsequente por parte dos usuários das vias. O terceiro conceito é o do ambiente técnico, que inclui as características da tecnocracia no setor de transportes. Como estas áreas são compostas e/ou pressionadas por segmentos mais influentes, elas tendem a favorecer as demandas por fluidez nos deslocamentos por automóveis, em detrimento da segurança do sistema como um todo.

O panorama descrito por Vasconcellos - aqui sumariamente descrito - explica, em alguma medida, as razões para uma postura reticente em relação às chances das ações educativas convencionais, voltadas exclusivamente à modelagem do comportamento das pessoas: em um meio desenhado em função da velocidade e fluidez de carros, os apelos para que os condutores façam uso prudente e igualitário do sistema viário, por exemplo, contradiz a própria realidade do ambiente construído e a sensação de impunidade que os autorizam, implicitamente, a ocupar a espaços públicos de forma autoritária e agressiva.

Já em relação à educação voltada aos papéis mais vulneráveis, os problemas vão além das dificuldades relacionadas à formação de boa parte daqueles que têm nos deslocamentos a pé ou por veículos não-motorizados o principal modo de locomoção. Em um meio caracterizado como "habitat do automóvel", os demais modos costumam ser vistos mais como um empecilho ao trânsito do que como parte dele. Como consequência, os próprios pedestres, ciclistas ou carroceiros internalizam essa condição e acabam, igualmente, se vendo como cidadãos menores - e à medida que se sentem excluídos, consideram-se também desobrigados de cumprir normas. Ademais, muito do que se entende como "educação" para pedestres resume-se a uma lista de restrições ou a sujeição a alternativas que implicam em desvios ou esforços pouco aceitáveis, particularmente para idosos, gestantes e pessoas com dificuldades de locomoção.

Por motivos como estes, as tentativas de se impor comportamentos incongruentes com as condições objetivas de circulação, fazem com que o insucesso das medidas educativas seja, frequentemente, atribuído à falta de colaboração de uma população indisciplinada. Neste contexto, reforçam-se as projeções que apontam que, nas próximas décadas, países em desenvolvimento em acelerado processo de motorização, como o Brasil, contribuam com não menos que 80% dos óbitos por traumas no trânsito no planeta.13 Os modelos de educação de trânsito tradicionais, desta sorte, não só deixam de atender satisfatoriamente ao fim precípuo a que se propõem, mas - o que é menos óbvio mas não menos grave - prestam-se a promover uma perversa conformação a ambientes perigosos e excludentes, reproduzindo padrões insustentáveis.

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palavras-chave: pedagogia, intersetorialidade, educação, trânsito, saúde