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Vias Seguras / A prevenção / A redução dos acidentes depende do total envolvimento da sociedade





A redução dos acidentes depende do total envolvimento da sociedade e dos entes do Sistema Nacional de Trânsito

Entrevista de Márcia Pontes

Marina Lemle

Marcia Pontes Foto 1

Nesta entrevista à Associação Por Vias Seguras, Márcia Pontes discute os principais entraves aos avanços no Brasil e vislumbra soluções a partir do exemplo da sua cidade, Blumenau, em Santa Catarina.

Em 2011, 43 mil pessoas morreram no trânsito, segundo o Ministério da Saúde. Como você vê o Brasil na Década da Segurança Viária, instituída pela ONU de 2011 a 2020?

Sou otimista, mas, até que alcancemos algum avanço, muita gente ainda vai morrer. Apesar de todos os esforços do governo federal com programas como o Parada (Pacto Nacional para a Redução de Acidentes) e projetos como Vida no Trânsito, Se Essa Rua Fosse Minha e outros, ainda estamos atrasados. A Década começou em 2011, já estamos indo para 2014 e as tragédias no trânsito só aumentam. O desafio de reduzir em 50% os índices de mortalidade no trânsito é grande para um país como o Brasil, em que as mortes em acidentes de trânsito matam mais do que as guerras do Oriente Médio.

O Plano de Ação do documento recomendado pela ONU que norteia as ações educativas para a Década da Ação pelo Trânsito Seguro se sustenta em cinco pilares, alguns capengas no Brasil: quanto ao gerenciamento nacional da segurança no trânsito, há estados e municípios que não aderem aos programas e campanhas educativas. Além disso, as campanhas historicamente tem sido fracas, sem o realismo e o impacto de campanhas internacionais como se faz na França, Reino Unido, Austrália, República Tcheca e outros.

Não temos infraestrutura e uma malha viária adequada; a frota é antiga e muitos veículos trafegam diariamente sem condições mínimas de segurança; o comportamento agressivo das pessoas no trânsito compromete a segurança de todos e quanto ao atendimento ao trauma, assistência pré-hospitalar, hospitalar e à reabilitação, há veículos de resgate mais bem equipados do que os próprios hospitais. Ou se estabelecem ações adequadas, sérias e comprometidas com o envolvimento de toda a sociedade e entes do Sistema Nacional de Trânsito ou a Década terminará e os acidentes continuarão aumentando.

Medidas de engenharia, legislação, fiscalização, punição, educação. Qual a importância de cada um para a segurança no trânsito? O que mais é preciso?

Assim como o trânsito é um sistema em que tudo e todos são interdependentes e as ações de um interferem para a segurança do outro, todas as ações estruturais, educativas e preventivas têm que ser sistêmicas, integradas, coordenadas. Não se pode pensar o trânsito de uma maneira descontextualizada, com ações isoladas. Se não houver equilíbrio em cada um dos pilares que sustentam os três E’s do trânsito - engenharia/ergonomia, fiscalização (enforcement, em inglês) e educação -, todas as ações estarão comprometidas. Hoje em dia já se fala num quarto elemento, o comportamento humano, porque trânsito é comportamento.

Não adianta tentar resolver os problemas do trânsito só com medidas de engenharia, mudando os traçados da via ou só com sinalização. Da mesma forma, só punir sem sensibilizar para educar também se perde no contexto, assim como só tentar educar para a aprendizagem de comportamentos seguros e defensivos também não funciona. Todas as ações tem que ser integradas e sistêmicas, estratégicas e bem alinhadas.

Sonho com uma educação para o trânsito integrada, coordenada, com ações sistêmicas, com capilaridade, com compromisso de todos. Enquanto isso não acontece, temos de continuar lutando, exercendo nosso compromisso existencial com a segurança no trânsito, fazendo valer nosso código de conduta que vai guiar nosso carro e nossas ações. Temos que continuar ensinando pelo exemplo. Se cada um fizer a sua parte, conseguiremos mudar pelo menos por onde passarmos, e teremos um trânsito cada vez melhor.

Partindo do caso de Blumenau, a sua cidade, poderia fazer uma reflexão sobre como se chegar a soluções para o trânsito?

O trânsito de Blumenau enfrenta dificuldades bem características da maioria das cidades brasileiras: uma frota que não para de crescer, a cultura do carro, o pedestre e o ciclista tratados como cidadão de segunda categoria e a falta de um programa de humanização, educação e prevenção que inclua a população não escolar. A fratura dos valores de convivência, o individualismo, a valorização do ter sobre o ser e os ideais de felicidade associados ao poder e status proporcionados pelo carro e pela moto são problemas cruciais.

O problema do trânsito é que as soluções são demoradas, precisam ser planejadas, precisam de investimento e boa vontade do poder público, mas todos querem resolver tudo a toque de caixa. As soluções são tão complexas quanto o próprio trânsito em si, como sistema que é, mas muitas soluções vem sendo buscadas isoladamente, de forma descontextualizada do todo. Infelizmente, aquilo que podemos fazer com os recursos e ferramentas que temos não se faz por falta de interesse e vontade política.

Começa por planejar as cidades para as pessoas e não para os carros, pela oferta de transporte público de qualidade que convença o motorista a deixar o carro em casa e campanhas que incentivem a carona solidária, o uso da bicicleta em trajetos curtos em substituição ao veículo particular. Mas, para isso, precisamos tirar o Plano Nacional de Mobilidade Urbana do papel e investir mais em humanização das cidades: construir calçadas, mais ciclovias, ciclofaixas e mais espaços de convivência para as pessoas. Blumenau não tem isso hoje. Recentemente foi anunciado um plano municipal para instalação de redutores eletrônicos de velocidade e compra de radar móvel como principais estratégias, mas faltaram as ações educativas e preventivas de trânsito que envolvam toda a população gastando pouco e utilizando os recursos materiais e humanos disponíveis.

Quando se pensa em ação educativa e preventiva de trânsito pensa-se nas ações com escolares e só, a partir do entendimento de que a criança vai sensibilizar o adulto e em respeito à ela ele vai cometer menos infrações. Só que milhares de crianças, inclusive bebês, não estão tendo tempo de crescer e ir aprender na escola sobre como sensibilizar os pais porque estão morrendo cada vez mais em acidentes de trânsito.

A meu ver são ações integradas que começam desde o berçário até a universidade, mas sem deixar a população não escolar de fora dessas estratégias porque trânsito é comportamento humano e comportamento humano também se aprende e se muda com os incentivos adequados. Todas as pessoas podem e precisam aprender comportamentos seguros e defensivos no trânsito.

Há que se pensar também no modo como estamos formando os novos condutores, porque eles são os que mais se envolvem em acidentes e mortes nas estradas brasileiras.

As Escolas Públicas de Trânsito são importantes? Por quê?

As Escolas Públicas de Trânsito tem papel fundamental nas estratégias de educação para o trânsito porque destinam-se, prioritariamente, à execução de cursos, ações e projetos educativos voltados para a construção da cidadania e ética na vida e no trânsito. Porque priorizam as regras de convivência e auxiliam na visão do trânsito como espaço compartilhado, mas também porque são ligadas aos órgãos executivos de trânsito nos municípios e podem participar de ações integradas entre todas as secretarias de governo dentro de um trabalho articulado.

No entanto, nem sempre é assim, inclusive há municípios já integrados ao Sistema Nacional de Trânsito que nem Escola Pública de Trânsito tem. Infelizmente, muitas Escolas Públicas de Trânsito se limitam ao institucional, não aproveitam as parcerias com lideranças comunitárias e não aprofundam o diálogo com a sociedade organizada. Isso é fundamental: envolver também a população não escolar nas ações estratégicas educativas e preventivas de trânsito.

Que iniciativas de educação de trânsito poderia destacar como exemplos a serem reaplicados em outros municípios do Brasil? Por quê?

O que se tem observado é que muitos municípios sequer estão demonstrando o seu comprometimento com as ações educativas de trânsito, com a importância de se fornecer estímulos adequados à população para que aprendam comportamentos seguros no trânsito. Dos 5.564 municípios brasileiros somente 1.337 se integraram ao Sistema Nacional de Trânsito. E muitos já integrados sequer tem estrutura mínima para executar a municipalização, tampouco tem políticas públicas específicas para a segurança no trânsito.

Alguns municípios menores, chamados muitas vezes de nanicos, têm campanhas educativas muito bem elaboradas, ao passo que municípios grandes, com mais de 300 mil habitantes, não incluem a população em campanhas educativas de massa. É o caso de Blumenau, que ainda não tem um Plano de Humanização do Trânsito ou uma política pública específica neste sentido.

Enquanto o trânsito é o que mais fere e mata as pessoas no Brasil, milhões de reais em verbas federais ficam parados nos cofres do governo e não são aproveitados pelos municípios por falta de bons projetos em educação e prevenção. Os municípios se limitam a reproduzir as ações e campanhas que vem de cima e, como melhores informantes de sua realidade, não estão criando de forma local e pontual as suas próprias estratégias conforme a municipalização.

Penso em ações integradas para o trânsito nas cidades no âmbito dos municípios como parte de políticas públicas bem definidas, executadas e sustentáveis em que haja um organograma identificando a participação ativa de todos os atores; um fluxograma discriminando o processo e o trabalho compartilhado; um documento mestre com as diretrizes e políticas para o trânsito no município que sirva de carta de navegação para todas as ações em educação para o trânsito nas cidades. E que sejam ações sistêmicas, coordenadas, integradas. Penso e sonho com a Educação Para o Trânsito na minha cidade liderada pelo Executivo, com participação da Secretaria Municipal de Educação, de Planejamento, do Departamento Municipal de Trânsito, da Guarda Municipal de Trânsito, da Escola Pública de Trânsito, do Conselho Municipal de Trânsito, mas também, com a participação ativa e efetiva dos psicólogos peritos examinadores do trânsito. Estes últimos são os profissionais e estudiosos do comportamento humano que em muito podem auxiliar na escolha dos estímulos adequados para as campanhas educativas com foco na aprendizagem de novos comportamentos no trânsito.

Não adianta o município ter uma escola Pública de Trânsito se ela trabalha isolada ou não faz parcerias com a população para campanhas educativas na cidade. Não adianta ter um efetivo enorme de agentes de trânsito se eles não orientam um pedestre que atravessa fora da faixa ou em meio aos carros, se são carrancudos, truculentos, se metem medo na população. Como cobrar gentileza no trânsito se quem deveria incentivá-la, estimulá-la, ensiná-la, não faz?

Penso e sonho em uma educação para o trânsito não só na década de 2011 a 2020, mas uma educação para o trânsito diária, cotidiana, em que haja diálogo entre o poder público e a sociedade organizada. Em que as estatísticas sejam mais do que números que crescem a cada dia. Em que a burocracia não impeça a tomada de decisões imediatas, urgentes, mas que dependem de análises, projetos e estudos burocráticos demorados. A realidade do trânsito, dos acidentes provocados por motoristas apressados, imprudentes, que continuam matando, aleijando, amputando, decretando a morte física e social das vítimas, de suas famílias e da sociedade é, e sempre será, o melhor parâmetro para as mudanças necessárias e imediatas nas cidades.

Mais informações

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palavras-chave: acidente, trânsito, redução, prevenção, educação