Dormindo com um olho aberto
Indefinição do governo sobre pontos de apoio para descanso de caminhoneiros mantém situação de alto risco nas estradas
Marina Lemle
Pouco antes do último Natal, a mídia voltava a sua atenção à ameaça (não concretizada) do governo de adiar a obrigatoriedade dos aibags e freios ABS em carros novos a partir de 2014. Enquanto isso, passava despercebido o veto da presidente Dilma a outro projeto de lei relacionado à segurança nas estradas: o PL 785/11, que determina a implantação, a cada 150 quilômetros, de pontos de apoio para o descanso de motoristas de veículos de transporte de carga e de passageiros.
Foto: Nájia Furlan/Appa
O projeto
De autoria do Deputado Onofre Santo Agostini (PSD/SC), o projeto complementa a Lei 12.619, conhecida como Lei do Descanso dos Motoristas, que regulamenta a profissão e limita a jornada de trabalho em oito horas por dia, mais duas horas extras. Esta lei, em vigor desde 2012, obriga o motorista, ao longo de 24 horas, a ter um intervalo de descanso de no mínimo 11, que pode ser fracionado em nove horas mais duas. A cada quatro horas dirigindo, o motorista deve parar por um tempo total de meia hora. (Saiba mais sobre a lei 12.619).
Caminhoneiros são os trabalhadores que mais morrem no Brasil, de acordo com o Ministério da Previdência Social. Em 2010 foram registrados 701.496 acidentes de trabalho, sendo 16.910 só no setor de transporte de cargas. Em 2011, segundo a Polícia Rodoviária Federal, dos 331.652 veículos envolvidos em acidentes nas rodovias federais, 93.066 eram veículos de carga - 28% do total. Eles representam, porém, apenas 3% da frota nacional.
O PL 785/11 foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara em 8 de outubro de 2013, após aprovação pelo Senado em 5 de junho de 2013, na forma do Projeto de Lei da Câmara 48/2012. Segundo Santo Agostini, o Senado pediu alteração do projeto no sentido de restringir a obrigatoriedade dos pontos de apoio às rodovias federais administradas por empresas privadas, o que foi feito.
O veto e a polêmica
O veto integral da presidente Dilma ao PL 785/11 foi publicado no Diário Oficial de 12 de dezembro de 2013, com a justificativa:
“Ouvidos, os Ministérios dos Transportes, da Fazenda e do Planejamento, Orçamento e Gestão manifestaram-se pelo veto ao projeto de lei conforme as seguintes razões:
Considerando a natureza técnica que a matéria apresenta, mostra-se mais adequado avaliar a melhor solução de acordo com as especificidades de cada projeto de concessão rodoviária, não sendo recomendável o tratamento do tema em nível legal. Além disso, da forma prevista, o projeto levaria a aumento dos gastos na concessão e consequente aumento de tarifas de pedágio e custos gerais de transporte, sem garantia de proporcional ganho para o usuário, já que não são ponderadas as necessidades concretas da rodovia concedida. Por fim, ainda que tal obrigação não seja aplicada a contratos vigentes, esta pode gerar efeitos em processos de concessão em curso, o que levaria à necessidade de revisão dos parâmetros relativos ao equilíbrio econômico-financeiro”.
Santo Agostini considera o veto “um verdadeiro absurdo”, já que outra lei em vigor obriga o transportador a parar para descansar. “O governo precisa dar condições para que a lei seja cumprida, como ocorre nos Estados Unidos e na Europa”, afirmou, em entrevista a Vias Seguras. Ele explicou que o projeto previa a implantação, preferencialmente nos postos de gasolina que já existem ao longo das estradas, de pontos de apoio com borracharia, lanchonete, local para banho e segurança. “O mais grave é o argumento do veto, de que isso levaria ao aumento dos pedágios. Quem orientou a presidente ou a enganou ou agiu de má fé”, disse.
Para analisar e relatar o veto presidencial, foi indicada uma Comissão Mista, composta por Santo Agostini, José Guimarães (PT), Eliseu Padilha (PMDB), Cesar Colnago (PSDB) e pela presidente da Frente Parlamentar em Defesa dos Trabalhadores em Transportes Terrestre, deputada Jô Morares (PCdoB). Uma comissão de representantes de entidades de trabalhadores do setor de transporte de carga irá a Brasília em 12 de fevereiro para contactar os membros da Comissão Mista, que têm até 21 de fevereiro para se manifestar.
Para Luis Antonio Festino, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTTT) e diretor nacional de Assuntos Trabalhistas da Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), a decisão foi política, baseada em interesses econômicos: “O Governo Federal continua com um discurso duplo. Por um lado, através de campanha nacional, defende o Pacto Nacional Pela Redução de Acidentes (Parada). Por outro lado, após um ano e oito meses da sanção da Lei 12.619/2012, o Poder Público está atendendo somente questões econômicas defendidas principalmente pelo agronegócio e maus empresários do transporte. A regulamentação da profissão de motorista só não ficou totalmente engavetada devido a ações do Ministério Publico do Trabalho e da fiscalização do Ministério do Trabalho e da Polícia Rodoviária Federal”, afirmou.
De acordo com Festino, os representantes das entidades participantes do Fórum Nacional em Defesa da Lei 12.619/2012 (FNDL), que assinaram a Carta de São Paulo em 6 de dezembro de 2013, elaborarão nota técnica demonstrando as contradições no veto presidencial.
Na opinião do advogado Marcos Aurélio Ribeiro, assessor jurídico da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC), o veto da presidente Dilma demonstra insensibilidade a um problema sério de segurança nas estradas. Para ele, é uma questão de bom senso que o governo determine a existência de pontos de parada com segurança e condições de higiene e conforto, inicialmente nas rodovias concedidas, uma vez que a lei obriga descanso a cada quatro horas.
“O aumento do pedágio seria insignificante diante do custo social das mortes nas rodovias. Se um aumento de centavos não se compara ao preço de uma vida, imagine de milhares”, declarou à Associação Por Vias Seguras. O advogado disse que as entidades continuarão tentando convencer o governo a atribuir às concessionárias e à iniciativa privada a missão de adaptar os postos existentes, seja através de financiamentos ou de parcerias público-privadas.
O presidente da Federação dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado do Paraná (Fetropar), Epitácio Antonio dos Santos, também criticou a insensibilidade do governo em relação à segurança dos motoristas. Segundo ele, no seu estado, o Paraná, há locais suficientes para descanso, mas em outros, como São Paulo, os postos que existem não atendem às demandas.
“A partir das 19 horas, é difícil arrumar vaga para passar a noite. O governo precisa ter pulso para incentivar a iniciativa privada a ampliar os pátios e criar condições sanitárias e de segurança para os motoristas poderem descansar”, disse Santos à Associação Por Vias Seguras. Para ele, é justo que, após investirem nas melhorias, os estabelecimentos cobrem pelo espaço e o serviço, o que custaria em torno de R$ 20 o pernoite.
Vagas existentes, falta de infra-estrutura
O estado de São Paulo, apesar de possuir a malha rodoviária com melhor infra-estrutura do país, tem apenas seis áreas de estacionamento, com 487 vagas, em trechos de rodovias administrados por cinco concessionárias. A informação consta num estudo feito pelo programa SOS Estradas, do portal Estradas.com.br, para dimensionar a infra-estrutura de pontos de parada nas rodovias brasileiras.
O estudo do SOS Estradas analisou dados de diferentes fontes e concluiu que o problema não é a quantidade de vagas, mas a falta de infra-estrutura dos locais que existem. A Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (Fecombustíveis) registra 8.113 postos situados em rodovia no país, mas a entidade alerta que parte destes postos está inoperante ou possui área pequena, inviável ao estacionamento de veículos de carga de grande porte. Já a Pesquisa Rodoviária da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) localizou 4.286 postos em atividade ao longo de 95.707 km das principais rodovias federais e estaduais do país, o que representa uma média de um posto a cada 22km.
Segundo o SOS Estradas, mesmo correspondendo a menos da metade da malha de rodovias pavimentadas no país, os dados da CNT mostram “uma oferta impressionante de postos”, a maioria com pátios que permitem o atendimento dos caminhoneiros, mesmo que ainda semestrutura de apoio para o pernoite seguro e confortável dos caminhoneiros. O estudo menciona ainda os mais de 2.500 postos de estrada que oferecem diesel S-50. Com estruturas maiores, estes têm em média 40 vagas, somando entre 80 mil e 100 mil vagas.
Para aprofundar o levantamento, foram selecionados 576 postos de rodovia das bandeiras Ipiranga e Petrobrás com áreas de estacionamento para pelo menos 15 carretas e sistema de CTF (Controle Total de Frotas), que permite o débito eletrônico em conta bancária direto da bomba de combustível - tecnologia considerada vital pelos proprietários de postos. Foram captadas imagens de satélite de todos os postos por meio de ferramenta do Google e feitas visitas e entrevistas com proprietários. No total geral, estes 576 postos ofereceriam pelo menos 74.925 vagas a caminhoneiros. De acordo com o SOS Estradas, ainda que a maioria dos postos não tenha restrição ao pernoite de caminhoneiros, muitos proprietários já estão investindo em estacionamentos com cancelas para separar clientes dos não clientes e analisando como rentabilizar o espaço.
Proprietários e prepostos informaram haver condições de ampliar o número de vagas nos estacionamentos em pelo menos 60% num prazo de até seis meses, utilizando terrenos dos próprios postos ou de vizinhos, o que ampliaria em mais 45 mil vagas a capacidade nestes 576 postos, que juntos poderiam vir a atender a 120 mil carretas. Mas eles só o fariam havendo perspectiva de lucro.
O estudo destaca a capacidade da iniciativa privada de oferecer pontos de parada nas rodovias, evidenciada pelas grandes paradas utilizadas por ônibus de linhas interestaduais e intermunicipais. “Para viabilizar a ampliação dos estacionamentos nos postos é fundamental admitir que esse é um serviço a parte, que precisa ser cobrado para viabilizar os investimentos e permitir sua expansão rapidamente”, afirma o SOS Estradas.
Os 576 postos analisados são pólos de desenvolvimento e empregam principalmente mão de obra pouco qualificada, que no interior precisa de oportunidade de trabalho. Temos que partir da premissa que os pontos de rodovia são essenciais para a logística do Brasil, particularmente na aplicação da Lei 12.619/12”, defende o estudo.
Os custos
Muitas empresas de transporte de carga não querem investir em áreas de apoio ou incluir no custo do frete o pagamento por serviços de estacionamento com segurança. Segundo o coordenador do SOS Estradas, Rodolfo Rizzotto, companhias embarcadoras e transportadoras tentam jogar esta responsabilidade e seu custo para o Governo.
“O que precisamos é que os caminhoneiros recebam o suficiente para pagar por estacionamento seguro. Isso vai estimular a construção de mais pontos e a ampliação das paradas atuais. O governo tem outras missões, como cuidar da saúde, educação, saneamento básico, infra-estrutura”, diz Rizzotto.
O SOS Estradas sugere que os governos simplifiquem e agilizem a aprovação de projetos de expansão dos postos de rodovias e criem mecanismos de financiamento, através do BNDES e outras instituições. Outra proposta é a aplicação da arrecadação da Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) para viabilizar melhorias e ampliações nos estabelecimentos.
Descanso ainda só no papel
O argumento da falta de pontos de parada tem sido usado por movimentos com posições contrárias ao limite do tempo de direção contínuo, formados principalmente por empresas que contratam autônomos que, sem vínculo trabalhista, não estariam submetidos à jornada estabelecida na lei. Já os caminhoneiros são seduzidos por ganhos maiores em viagens feitas em tempo menor.
Estes grupos tiveram uma vitória quando o Contran praticamente suspendeu a fiscalização da Lei do Descanso com a Resolução n° 417 de 12 de setembro de 2012, que recomendava que “a fiscalização punitiva se dê nas vias que tenham possibilidade do cumprimento do tempo de direção e descanso, no que se refere à existência de pontos de parada que preencham os requisitos definidos no art. 9º da lei 12.619, de 30 de abril de 2012.”
O SOS Estradas acredita que, com o tempo, os caminhoneiros e as transportadoras vão perceber que pagar para ter um estacionamento cercado, organizado, com segurança, representa um custo/benefício válido e importante para que os profissionais do volante parem de dormir “com um olho fechado e outro aberto”.
Baixe o estudo do SOS Estradas em formato PDF
Leia mais:
Polêmica sobre a Lei do descanso dos caminhoneiros (reportagem publicada em 29 de março de 2013)